Vez por outra sou atacado por um inimigo atroz: eu mesmo. Delimito meu mundo, e meus únicos vizinhos tornam-se meus desejos; sem reconhecer a ferocidade dos meus egoísmos, contento-me com minha insignificância. Nessas alucinações entrópicas, descubro a gênese de meu egocentrismo. Ele acontece quando, depois de lutar por ideais, cobrar atitudes das pessoas e propor um mundo mais justo, sou acometido pelo desejo de mandar tudo para o espaço e cuidar só do estreito quintal de minha vida.
Há pouco tempo deu-me uma vontade louca de desistir de tudo e me mudar para bem longe. Meio desencantado com minha geração, tive um ímpeto de me aposentar precocemente; talvez comprar uma casinha no sertão, diminuir minhas demandas financeiras e passar o resto dos meus dias lendo, pescando e curtindo a companhia sempre prazerosa de minha mulher.
Quando já me preparava para viver como uma cigarra selvagem, sem muita preocupação senão com minha própria felicidade, por acaso, li um pequeno trecho do poeta mexicano Amado Nervo (1870-1919). Suas palavras ressoaram dentro de mim com tanta força, que adiei minha aposentadoria por tempo indeterminado:
“Todo homem que te procura vai pedir-te alguma coisa; o rico aborrecido, a amenidade da tua conversa; o pobre, o teu dinheiro; o triste, um consolo; o débil, um estímulo; o que luta, uma ajuda moral. Todo homem que te busca, certamente há de pedir-te alguma coisa. E ousas impacientar-te!
“Infeliz! A lei oculta, que reparte misteriosamente as excelências, dignou-se outorgar-te o privilégio dos privilégios, o bem dos bens, a prerrogativa das prerrogativas: dar. Tu podes dar!
“Deverias cair de joelhos e dizer: Graças, meu Deus, porque posso dar! Nunca mais passará por meu semblante uma sombra de impaciência.”
Ao terminar a leitura, lembrei-me que o conceito de liberdade cristã não contempla qualquer egocentrismo. Anjos egoístas se transformaram em demônios; homens, em pecadores; e o mundo, num inferno. Assim, decidi resistir a essa tentação de abandonar minha vocação. Resolvi que asfixiarei essas inclinações que desafiam a minha fé e exorcizarei a vontade de parar – ela arrastará meu coração para o conforto dos tímidos que não herdarão o Reino de Deus.
André Comte-Sponville tratou da generosidade em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (Martins Fontes) e concluiu que “a generosidade, como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se eqüidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade”.
Devemos lembrar que a prioridade maior da fé não consiste em defender verdades, mas em aprender a amar. Jesus disse em João 13.35: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”. Há algum tempo venho propondo que o principal curso dos seminários deveria ser “Agapeologia”, objetivando mostrar que ninguém pode se considerar um seguidor de Cristo se não dividir seu lanche, como fez um menino no milagre da multiplicação, e se não lavar os pés dos desafetos, como fez Jesus na noite em que Judas o traiu.
Reconheço a dificuldade de abrir mão da minha reputação para não deixar que melindres tirem minha alegria de servir, insistirei em me dar incondicionalmente àqueles que nem valorizam meus gestos de bondade. Reconheço que a trilha mais confortável conduz ao isolamento e que, muitas vezes, sinto facilidade em responsabilizar o próximo pelos meus infernos. Mas esse impulso de buscar isolar-me não nasce do Deus Trino que desde sempre convive em perfeita harmonia. Um projeto de vida egocêntrico é luciferiano.
Sabendo que o egoísmo nasce do diabo, rejeito seus ardis. Não sonegarei meus afetos, não vou ilhar-me, indiferente ao meu semelhante; não tentarei fugir para os confins do universo; e nem farei da minha cama um abismo de lamúrias. Atenderei ao apelo de Paulo: “E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem (...) sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor” (2 Ts 3.13; 2 Co 15.58).
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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